15/06/2010

QUALQUER UM

À noite ele se chama “Qualquer Um”. Mas, de manhã, antes da cachaça, o nome do homem é José das Graças. José das Graças, casou embriagado de cachaça com uma mulher embriagada de amor. O nome da mulher é Teresa Maria das Graças. Um dia ele envolveu Teresa no cheiro da cachaça. E gerou Zezinho das Graças que ficou sendo chamado Zezinho, filho de Teresa com José da Cachaça. Saía de manhã com o nome de José das Graças. E voltava à noite - quando voltava - Com o nome de “Qualquer Um”. Bêbado não tem nome perde o nome.... Perde a identidade entre a gente da cidade. Bêbado não é homem. Não é gente... Não é marido. Não é pai. É qualquer um para qualquer um. A cachaça fazia de José um homem sem nome... Sem dinheiro... Sem cara... Sem casa... Sem lugar... Sem confiança... Sem vontade... Sem esperança Um homem sem raça... Um caso perdido. E, para a galera... Um caso divertido. A cachaça fazia de José m homem sem serviço... Sem compromisso... Sem sossego... Sem emprego. Um marido sem mulher... Sem um amor sequer... Um pai sem filho... Sem nenhum brilho. Mas, ainda havia Teresa. Que se fazia de sua única certeza. A mulher que maltratou sua beleza. Para amar José das Graças Sendo sua mulher de graça. Também nos dias da cachaça. Aos poucos ia-se tornando. A Teresa Maria sem Graça E Teresa Maria das Graças. Para o senhor “Qualquer Um” Valia menos que um copo de cachaça. Teresa só servia todo dia como lavadeira... Como cozinheira... Como passadeira. E... Como escarradeira. Escarrando cachaça em Teresa, Gerou Zezinho das Graças. A única graça da Teresa. E Zezinho com Teresa sozinha crescia, a cada dia. Em idade, estatura, e “sem graça” como filho de José da Cachaça. Todo dia José saía para a cidade. Para uma responsabilidade. E toda noite voltava quando voltava –... Encharcado.... Dopado... Drogado... Desfigurado... Sem raça... E sem graça de tanta cachaça. Todo fim de semana. O senhor “Qualquer Um” chegava em casa... Trocando pernas... Batendo cabeça... Enrolando a língua... Sem dinheiro... Sem serviço... Sem compromisso. Embora sendo José da Cachaça. Ele gostava do Zezinho das Graças Mais do que de Teresa que sujou sua beleza na cachaça do José. Foi, de noite, num sábado. Esperança de domingo. Esperança da família na mesa. José saiu cedo. Deixando a Teresa e o Zezinho Sozinhos e com medo. Para viver o seu dia- sábado é o dia do bêbado – Às vezes, hoje, o dia do bêbado já começa na sexta - E depois que José saiu Zezinho acordou quente... Doente, muito diferente. E naquele sábado Teresa, mãe de Zezinho ficou sozinha, como a mulher do “Qualquer Um”... Sem amigo algum... Sem dinheiro nenhum... Sem qualquer pão... Sem qualquer remédio. Ficou sozinha Amargando, abandonada, A amargura do sem nada. Na hora que “Qualquer Um” divertido, fazia graça Com o litro de cachaça A morte tirava a única graça da sua casa: Zezinho morria diferente, frio e de repente Com Teresa, somente Sem avisar o pai. Um caixote uma vela um velório uma reza muitas lágrimas. Lágrimas só de Teresa. Já muito noite o José da Cachaça chegou como “Qualquer Um”... Cantando ... Tropeçando... Cuspindo... Escarrando... Xingando... Rindo... Chorando. A cachaça... Canta... Ri... Chora... Tropeça... Cuspe... Escarra... Xinga Viu no velório uma festa - para o bêbado o que é triste é festa – Riu do Zezinho dormindo na morte. Riu da tristeza da Tereza.
Deu gargalhada. Achando graça. E babando sobre o corpinho do Zezinho. Rindo... Dando gargalhada... Achando graça do que não tinha graça... Vomitando cachaça
“Qualquer Um” dormiu naquele sábado. O sono do bêbado... Sem ver Zezinho morrer
... Sem ver Teresa chorar e sofrer... Sem ver Zezinho partir. Sem serviço Sem compromisso José das Graças levantou-se. Foi ao bercinho beijar Zezinho Com um beijo seco de pai. E Zezinho não estava lá. Zezinho saiu de casa. Mudou para o céu. Foi para a casa do grande Pai. Sem poder se despedir do seu pequeno pai. Que o gerou, na cachaça. A casa do José das Graças perdeu sua única graça. E só ficou Teresa com a tristeza de mulher ferida doída. Sem marido com a alma sem beleza. E sem o único brilho dos olhos do filho. José da Cachaça machucado e calado catou uma a uma, sem deixar nenhuma, todas as garrafas vazias esvaziadas naqueles dias. Jogou todas dentro do saco de linhagem rasgado e sujo de forragem. E saiu para a rua... Nua sem luz... Sem sol... Sem gente. E sem Zezinho. Caminhou tropeçando. E chorando. Tropicando E soluçando tonto zonzo e gelado de tanta dor sem o queimor da cachaça. Teresa, sua única certeza morta na beleza carregando o coração rasgado, machucado de tristeza. E cheio de toda a frieza de tamanha dor do vazio de mãe sem filho Vinha atrás, abraçando um resto de flor Andando em zique-zague pisando nos passos tontos de José da Cachaça que carregava garrafas vazias. No saco sujo de linhagem. José da Cachaça Sem cachaça e sem a graça do Zezinho andava tropicando e tropeçando. Caminhava desajeitado e pesado de garrafas vazias naquelas ruas vazias: Vazias de luz... De sol... De gente... De vida. Vazias do Zezinho. O filho de Teresa com José da Cachaça. Tropeçando uma última vez entrou de vez no pátio escuro... Sem muro... Sem luz... Sem sol... Sem gente. Naquela manhã escura só havia sepultura. Teresa, sua única certeza carregando no coração rasgado. E sujo de tanta tristeza. Toda frieza de tanta dor e abraçando restos de flor em silêncio mostrou com o dedo ali no chão. O bercinho de terra onde Zezinho, sozinho dormia escondido do José da Cachaça. José da Cachaça cansado amarrotado no corpo e na alma tirou uma a uma - sem deixar nenhuma -Todas as garrafas vazias esvaziadas naqueles dias. E foi colocando uma a uma numa liturgia de oferta doída e carinhosa. As garrafas vazias em forma de cruz Sobre o berço novo de terra do Zezinho das Graças. Em cada garrafa vazia- Que foi punhal de uma dor no coração de Teresa - A Teresa Maria das Graças com toda a graça de mulher das dores colocou uma flor Numa liturgia de oferta materna de amor. E assim, com Zezinho dormindo sozinho debaixo da cruz de garrafas vazias naquele dia, morreu a tristeza da Teresa.
E nasceu toda a beleza da vida nova de José da Cachaça que voltou a ser - para sempre - Para Teresa.

Por -Euler Pompeu de Campos

15/10/2010

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